Muito BOM! Identifico-me com muito do que é escrito a seguir:
Artigo de Ricardo Barbosa de Sousa
Não
é sem motivo que Deus, logo após libertar o povo da escravidão no
Egito, os conduziu para o deserto. A passagem pelo deserto era
necessária para ajudá-los a deixar para trás a mentalidade da escravidão
e a compreender a nova liberdade que Deus lhes estava oferecendo.
Quando damos o nosso sim a Deus, ele sempre nos conduz ao deserto.
O
nosso deserto não é igual ao das areias do Neguev ou do Saara. Nosso
deserto é o lugar onde somos levados a refletir sobre nossas ilusões, as
expectativas infantis que nos mantêm alienados, inclusive de pessoas
que amamos; os medos que mascaramos ou sublimamos em nossa busca
frenética por realização e entretenimento. No deserto, não temos um
caminho claro e seguro, nenhuma distração, nada que nos excite. Nele, o
futuro é incerto, nos vemos vulneráveis e fragilizados, e experimentamos
a força das trevas interiores do medo.
Por outro lado, o deserto
é o lugar do encontro com Deus, da rendição do orgulho e da ilusão de
sermos senhores do nosso destino. É o lugar da companhia divina, do
silêncio diante de Deus, onde a quietude nos ajuda a reconhecer a
presença dele. O silêncio que nos torna mais atenciosos à voz de Deus.
Para sermos livres, precisamos nos afastar, por um tempo, do mundo dos
homens para entrarmos, a sós, no mundo de Deus. Um tempo no qual as
paixões, tensões, pressa, vão, lentamente, cedendo espaço para
percebermos a realidade à luz da eternidade e restabelecermos o valor
correto das coisas. No deserto, reduzimos nossas necessidades àquilo que
é essencial.
A enfermeira americana Bronnie Ware escreveu um
livro sobre os “cinco maiores arrependimentos ou lamentos de pacientes
terminais”. Depois de acompanhar por vários anos estes pacientes, ela
listou aquilo que eles gostariam de ter feito e não fizeram, como: ter
mais tempo para os amigos e não ter trabalhado tanto. O deserto deles
trouxe uma outra dimensão de suas reais necessidades.
Na solidão
do deserto, descobrimos a suficiência da graça de Deus. Teresa de Ávila
(1515--1582) descreveu num poema sua experiência no deserto:
Nada te perturbe,
Nada te espante.
Tudo passa.
Deus não muda.
A paciência tudo alcança.
Quem tem a Deus,
Nada lhe falta.
Só Deus basta.
Nossa
necessidade primeira é Deus. De tudo o que aprendemos no deserto, a
lição mais importante é que aquilo de que mais necessitamos encontramos
na comunhão com Deus. A experiência do deserto nos conduz ao
autoesvaziamento, ao desapego dos ídolos que nos oferecem a falsa
segurança, e à completa submissão a Deus e aos seus caminhos. Aprendemos
a ver a vida desde a perspectiva da eternidade, o que nos ajuda a
colocar em ordem nossos valores.
A verdadeira liberdade nasce do
deserto. Foi no deserto que Jesus reafirmou a identidade dele e seguiu
livre para realizar a missão dele em obediência ao Pai. Não precisou
usar nenhum artifício para se autopromover. Foi livre para fazer o que
tinha de fazer, assumir a cruz e, no fim, morrer. O deserto nos liberta
dos falsos deuses, das mentiras e ilusões que nos fazem pessoas
controladoras e manipuladoras. Rompe com a falsa sensação de que temos
controle sobre o nosso destino. O deserto nos torna pessoas mais
verdadeiras, livres, e mais conscientes de nossa total dependência de
Deus.
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Ricardo Barbosa de Sousa é pastor da Igreja
Presbiteriana do Planalto e coordenador do Centro Cristão de Estudos,
em Brasília. É autor de, entre outros,
A Espiritualidade, o Evangelho e a Igreja.